Série ‘Lúcifer’ comprova apelo pop do bad boy na ficção
Do alto de uma suntuosa cobertura com vista para Los Angeles, um galã, de lencinho no paletó e barba milimetricamente feita, rearranja a posição de uma rosa vermelha na mesa de jantar.
Ele sorri com seus dentes branquíssimos quando vê o resultado e pulsa em ansiedade ao ouvir a amada, a quem chama carinhosamente de “detetive”, sair do elevador, já tecendo elogios ao vê-la deslumbrante em roupas casuais – estas, em muito diferentes do caro vestido vermelho que ele lhe havia comprado para aquele encontro.
“Sem toalha branca dessa vez?”, ela pergunta, ao que ele responde: “Não, da última vez foi como se um casamento judeu tivesse tido costeletas de porco para o jantar. Então eu fiz algumas alterações.” A cena poderia ter sido roubada de qualquer romance bem-humorado no qual um ricaço mulherengo é fisgado por uma moça comum. Aqui, no entanto, o galã é o diabo em pessoa, protagonista da série Lúcifer.
Romance e sarcasmo não são suas únicas qualidades: aliás, à exceção das asas e do alter ego assustadoramente vermelho, o diabo da série de sucesso da Netflix é encantador. Bonito, rico, de sotaque britânico (ao que parece, o Inferno da série presta reverência à rainha), charmoso e terminantemente honesto, Lúcifer Morningstar (Tom Ellis) não esconde quem é. Na verdade, faz questão de se apresentar como diabo para todos que conhece. De dia, resolve homicídios com a detetive Chloe Decker (Laura German), por quem nutre sentimentos românticos, e, de noite, quando não está tentando conquistar a arredia loirinha, comanda um badalado bar chamado “Lux”, onde entoa canções em seu piano. Para coroar, o chefão do Inferno ainda faz terapia.
Ainda que seja risível se deparar com as grandes questões psicológicas d’O Cara Lá De Baixo em um sofá-divã, a construção do personagem, um típico bad boy que arranca suspiros, é parte de uma antiga tradição de sucesso da ficção, de onde Lúcifer não só bebe, como faz uma atualização. Não à toa, a série, que recentemente lançou sua quinta e última temporada, lhe rendeu um sólido posto na liderança do Top 10 da Netflix.
Reinando no legado deixado por James Dean, o Jim Stark de Juventude Transviada (1955), e Marlon Brando, de Uma Rua Chamada Pecado (1951), Lúcifer conserva algumas das características cunhadas pelos bad boys das antigas: tem a língua afiada, é desvairado, mulherengo, pouco pensava em compromisso até conhecer a pessoa certa.
Mas, mais do que isso, faz parte de uma nova safra de personagens que se esforça para colocar o homem mau, pero no mucho, em sintonia com os novos tempos. São estes os que desceram das motocicletas descoladas e roupas de couro para darem passos em direção ao que é cada vez mais fictício. Bilionários sádicos, como Christian Grey de Cinquenta Tons; vampiros, caso de Edward de Crepúsculo; e até alguns que nem deveriam causar suspiros, como o psicopata Joe, da série Você; entram na lista de pares românticos recentes da ficção que atraem o público, justamente por terem traços tão mirabolantes que só são encantadores por causa das lentes da ficção.
O mesmo vale para Lúcifer, o epítome da maldade: um rapaz bonito, de corpo esculpido e britânico no senso de humor e no sotaque, é muito mais palatável do que a típica e assustadora criatura vermelha, que curte um enxofre e tem chifres pontiagudos.
A quem a narrativa bíblica escapa, vale explicar que Lúcifer é um anjo criado por Deus, banido dos Céus para comandar o Inferno. Na série, inspirada nos quadrinhos de Neil Gaiman, ele se entediou com a vida infernal milenar e fez uma mudança irônica para Los Angeles – a Cidade dos Anjos –, onde conheceu Chloe Decker e entrou para o mundo dos justiceiros. Completamente caído pela moça, se esforça para provar que é mais que seu lado diabólico e que merece uma chance no amor. Romantizar o que é desagradável faz parte do pacote do bad boy.
Lúcifer, Christian Grey e Edward Cullen, entre outros queridos bad boys recentes da ficção, caminham do lado legal da linha que separa crime de desvio de caráter – ao contrário do assassino da série Você, e do sequestrador e abusador Massimo Torricelli, do longa 365 DNI. Apesar de ser o diabo em pessoa, Lúcifer, carinhosamente apelidado de Lúci, segue uma bússola moral, que é ainda mais atraente quando a máscara de vilania cai para revelar um rostinho bonito, e disposto a mudar, por trás. Está aí a mágica da ficção.